A escrita sem receita de Julio Villanueva Chang




Seria fácil começar este texto descrevendo o escritor peruano Julio Villanueva Chang por suas camisetas com frases irônicas — “Do not commit”, por exemplo, um “Não se comprometa” silencioso — ou uma maneira particular de jogar os cabelos de índio para trás, antes de completar um raciocínio. Mas o próprio palestrante reprovaria: segundo ele, é um vício descrever todo e qualquer detalhe do perfilado.


— É preciso transformar o dado em significado, buscando um padrão no comportamento do personagem — ensina Chang.


E os três dias da Oficina Literária da Flip foram poucos para saber se as camisetas engraçadinhas de Chang são, de fato, um padrão ou apenas a falta de frio, naquele ar condicionado desnecessário da Casa de Cultura de Paraty.


Outra maneira de descrevê-lo seria pinçar uma das muitas sacadas de Chang.


— Um perfil é um texto de auto-ajuda de alto nível — concluiu, em determinado momento, sobre a ânsia do leitor em se identificar com o personagem em questão.


Ou quando afirmou que qualquer história são duas histórias: “a óbvia e a secreta”, manifestando seu interesse pelas secretas, sempre. Mais uma vez, Chang não se entusiasmaria.


— Abrir um texto com aspas é muito mais fácil — acredita o fundador da revista “Etiqueta Negra”, na qual os perfis publicados costumam levar meses para serem escritos, passando por dezenas de versões. — A voz do autor do perfil deve imperar, tanto no início, quanto no encerramento de uma história. Tampouco gosto de começar um texto detalhando o clima do lugar, usando datas ou horários. Não temos que escrever ainda como Dostoievski, que não via televisão! Não é preciso descrever tudo.


Foram quase seis horas de comentários sobre 37 textos selecionados pelo autor, em que nenhum se encaixava no padrão das notícias comuns. A apostila distribuída aos 30 participantes, com mais de 300 páginas xerocadas de livros, jornais e revistas (o que já adiantava uma certa subversão de sua parte), trazia histórias inesperadas sobre o tempo livre do jogador argentino Lionel Messi, uma arqueologia do ketchup ou o funcionamento do cérebro de Bob Dylan.


O escritor peruano explicou por que um perfil do coveiro que enterrou JFK poderia dizer mais sobre o presidente americano do que o próprio, ou por que um texto sobre o último colocado em uma maratona podia ser mais interessante do que uma entrevista com o primeiro.


— Um perfil deve transmitir experiências, colocar o leitor em cena, e não apenas contar coisas — sustenta Chang.


Para isso, acredita ele, vale assistir a todos os filmes pornôs da Cicciolina, se o perfil é sobre a atriz húngara que virou deputada na Itália. Vale pagar 250 euros por um jantar no restaurante de Ferran Adrià, se o entrevistado é o chef espanhol. Vale falar com mais de 40 amigos de uma Miss Mundo decadente, se o objetivo é contar o seu envelhecimento em um vilarejo peruano.E vale até deixar escapar um fracasso recente: autor de dezenas de perfis e ganhador de diversos prêmios literários, professor visitante de Harvard entre muitos apostos, Chang parece não se conformar em não ter conseguido ainda escrever um perfil de Oscar Niemeyer.


— Não é apenas ânimo de querer ser sempre original, mas complementar o que já foi escrito sobre ele — lamenta, mencionando as perguntas que faria ao arquiteto centenário. — Parece impossível, porque já perguntaram tudo a Niemeyer.


Diante do desafio, Chang já foi três vezes almoçar no restaurante preferido do velho comunista, e descobriu que ele sempre pede uma simples macarronada à bolonhesa, coberta por um ovo estrelado.


— Todas as informações inúteis me interessam — encerra Chang, cumprindo seu objetivo inicial, enunciado na primeira aula: deixar pelo menos um ouvinte com vontade de reescrever todos seus textos.





FLIP 2010: A escrita sem receita de Julio Villanueva Chang. O Globo, Rio de Janeiro, 08 ago. 2010. Disponível em: < https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/o-critico-de-pessoas-305126.html>. Acesso em: 18 abr. 2021.

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