A morte e a imprensa



 James Ferguson


Quem morreu no Reino Unido em janeiro de 1731? A revista Gentleman’s Magazine nos informa. Sir Peter Verdoen; falecido Senhor Prefeito de Dublin. Mr Oliver Savigny, o faqueiro do rei. Mr William Whorwood, arquivista de cartas dos correios estrangeiros. Mr Morris, o fabricante de charretes do Príncipe de Gales. Outro Mr Morris, o fazedor de perucas de Pall-Mall, enforcou-se, sendo diagnosticado como lunático. O Visconde de Falkland, na França, sepultado na Igreja de São Suplício em Paris. Mr Trunket, fabricante de perfumes sem ter uma fábrica, muito conhecido em New-Market. Mr William Taverner, procurador, em sua casa em Doctor’s Commons. Ele era filho do Mr Jeremiah Taverner, maquiador, declaradamente honesto em sua profissão e autor das seguintes peças teatrais: “A Fiel Noiva do Canadá”, “A empregada que virou amante”, “As advogadas” e “O Fanático pregoeiro da bolsa de Londres”. Robert Bristow, com a idade de 105 anos, em Stamford, que havia perdido a audição, mas conservou sua visão e outros sentidos até os últimos momentos de vida.

Há algo irresistível sobre listas de mortos. A monte dá dignidade a um nome, não importa quão obscuro seja este nome. Como os memoriais de guerra relembram, outono após outono, nos Remembrance Sundays, suas listas de honra como uma ladainha de folhas caindo, assim as colunas de notas de falecimento dos jornais dão substância a este último e misterioso rito de passagem. “Nascimentos, casamentos e falecimentos” são hoje um dos poucos artigos que vendem nos jornais diários; estas listas sobrevivem como uma das razões pelas quais antigos leitores não mudam de jornais. Elas prevalecem por ser uma realidade privada muito mais ampla que as histórias de capa de jornais, de guerras, de terremotos, de florescimento econômico e de mudança de governos.

Edward Cave, mais conhecido como “Sylvanus Urban”, o fundador do Gentleman’s Magazine, reconhecia que a âncora de toda notícia está nesses acontecimentos locais, domésticos. Ao publicar o primeiro número mensal da revista em janeiro de 1731, ele declarou que o objetivo principal daquela revista era “dar mensalmente uma visão geral daquelas matérias de humor e inteligência oferecidas diariamente aos leitores pelos jornais, (que ultimamente se multiplicaram tanto a ponto de tornar impossível para o leitor consultá-las todas, a não ser que ele faça da leitura uma espécie de ocupação diária) e em seguida vamos ajuntar também outras questões de Utilidade ou Entretenimento que nos serão comunicadas”.

Aquele primeiro número resumia e coletava em 42 páginas de texto, um incrível volume de informações, incluindo, além dos boletins estrangeiros, uma seção de poesia e uma coluna de jardinagem, lista de preços de commodities, nascimentos, casamentos, mortes, sepultamentos e acidentes, eventos (civis, militares e eclesiásticos) e nomeações de xerifes para o ano que começava. A gente fica sabendo que dos 1.969 enterros acontecidos entre o dia 28 de dezembro e o dia 27 de janeiro, 992 eram homens e 977 eram mulheres. 709 morreram com menos de 2 anos de idade e outros 106 entre 2 e 5 anos de idade. O preço do carvão para uso nas lareiras gravitava entre 26 e 28 shellings ou 6 dimes por caldeirão, o vinho sherry custava entre 28 e 30 libras ‘per T’, o opium custava 11 shellings a libra. Este olho voltado para o detalhe mínimo diferenciava o Gentleman’s Magazine e o tornava fascinante e importante, uma amostra de evidência histórica como ficou provado, no seu tempo, provendo entrenimento e sendo útil aos seus leitores. Mais tarde naquele século, em 1778, a revista passou para as mãos de John Nichols que decidiu aumentar de modo particular o calendário das mortes de “Pessoas eminentes”, dos quais alguns eram apenas lembrados, outros tratados com informações mais elaboradas até chegar a uma completa coluna de obituários. Assim fazendo, John Nichols estabeleceu um padrão para a necrologia dos tempos modernos.

Foi assim que, num mês escolhido por acaso em 1791, ano em que John Nichols assumiu de forma definitiva a editoração da revista, a Coluna de obituários – hoje intitulada “Obituário de pessoas consideráveis” - com anedotas biográficas e ocupando até oito páginas de tipos pequenos – inclui Josiah Clark, 92, de Northampton, Massacusetts, um dos seis filhos de longa vida que deixaram entre eles 1.158 descendentes, dos quais 925 estão ainda vivos. Mrs Mary Minchin, “viúva do honesto Miller”, o homem mais rico de Winchester, deixando sua fortuna para a cozinheira do Winchester College. Robert Smith, 82, de Lincolnshire, sacristão por 38 anos que “durante este tempo, sepultou cerca de 1.500 criaturas semelhantes a ele”. Dr Barrow, de Lancaster, com sessenta anos, que aprendeu, muito tempo depois de ter saído do berço, a ler as horas no relógio da cidade. Alexander Gerrard, advogado que atendia o juizado móvel de York, que fatalmente confundiu a cortina de sua janela com a cortina de sua cama. James Heath, 76, “popularmente chamado pelo apelido de “The Wild-one” e muito conhecido por muitos anos, como o mais formidável caçador de animais selvagens do Reino. Ele nunca dormiu numa cama, mas nos campos, em todas as temperaturas. Seu corpo era quase completamente coberto com pelos de considerável comprimento e que, mesmo nunca tendo usado roupas fechadas na mais fria temperatura, nunca experimentou um dia sequer de doença durante sua vida.”

O leitor encontra ali, publicado no calendário do destino entre o obituário da sogra de Mr Isaac D’Israeli e o obituário de Monsieur de Blossette, que, “sobre sua mesa de café da manhã, escreveu muito sagazmente, sobre a evaporação, dissipação e difusão dos vapores, e também sobre o fenômeno dos cometas e outros assuntos dignos de uma mente contemplativa”, o leitor encontra publicado entre esses dois obituários o seguinte: “Morre, em 2 de março de 1791, de ‘gradual envelhecimento’, o Reverendo John Wesley, M.A., uma das mais extraordinárias pessoas que esta ou qualquer outra idade produziu”. Cerca de 2.500 palavras são dedicadas ao falecimento do fundador da Igreja Metodista, ponderadas, detalhadas e comoventes palavras, um modelo de piedade, mas um texto que respeita todas as propriedades da narrativa. “Onde tantas coisas boas são feitas, não devemos marcar cada pequeno excesso”, opina o obituarista anônimo.

O grande ponto em que o seu nome e sua missão serão honrados é o seguinte: ele dirigiu os seus esforços para aqueles que não tinham professores, às estradas e margens, às minas de cornwall e aos carvoeiros de Kingswood. Estas criaturas infelizes se casaram e se sepultaram entre eles mesmos e frequentemente cometiam assassinatos com impunidade antes da chegada dos Metodistas. Por meio da iniciativa humana e ativa de John Wesley e de seu irmão Charles, um senso de decência, de moral elevada e de religião foi introduzido na mais baixa classe do gênero humano. Os ignorantes foram instruídos, os miseráveis socorridos e os abandonados encontraram um lar.

Em uma única e pequena nota de obituário, Monsieur De Blossette ou “The Wild-one” está condensado o material para uma inteira biografia. Nas louvações e panegíricos mais extensos, como aquele a John Wesley, o leitor encontra as linhas mestras de uma biografia. Para muitas pessoas são as únicas informações biográficas. Um primeiro e rápido julgamento sob o calor do acontecimento. O obituário é também importante para os arquivos da história. É parte daquela tradição do jornalismo como fonte histórica à qual jornais e periódicos como o Gentleman’s Magazine aspiravam, uma tradição que subitamente se tornou defunta numa idade em que os jornais perderam a confiança em si mesmos e a missão de informar difere profundamente da tarefa de entreter. O obituário é uma forma particular de produzir notícia. Por um lado, envolve mais trabalho original e criativo do que uma reportagem. Por outro lado, é mais bem examinado e checado por meio de padrões mais rigorosos. O parente ou amigo que está sofrendo os pêsames é um leitor à moda antiga que não perdoa nenhum erro de apuração.

Os britânicos têm um talento particular para as pequenas biografias seja na forma resumida do Gentleman’s Magazine, seja no formalizado estilo do Diccionary of National Biography, talvez o mais rápido e mais bem-sucedido dicionário jamais produzido. Enquanto o Australian Diccionary of biography, com data inicial de 1788, depois de mais de trinta anos sendo elaborado, arrasta-se a meio caminho do período que vai de 1940 a 1980, o Diccionary of National biography cobriu um período muito mais longo. O DNB vai dos primeiros tempos da história até 1900, em um pouco mais da metade do tempo gasto pelo correlato australiano. Leslie Stephen foi nomeado diretor do DNB em 1882. O primeiro volume foi publicado em janeiro de 1885. O último volume a ser publicado sob os cuidados de Sidney Lee, assistente de Leslie e mais tarde seu sucessor, saiu em junho de 1901. O dicionário traz uma pequena biografia de 27.236 pessoas – de monarcas e homens de Estado aos minute names, como Stephen os chamava, algo muito útil do ponto de vista dos leitores, como se fosse a patente e o arquivo de um grande exército. Pessoas que geralmente são ignoradas pelos historiadores e biógrafos. Os muitos soldados de pés descalços que merecem ser lembrados talvez por apenas um fato considerável constituem o cerne do DNB – aqueles, disse Sidney Lee, que somando suas façanhas e realizações, cuja carreira apresenta alguma coisa que justifique a preservação de sua memória. Da mesma forma que acontece com o DNB acontece com os obituários dos jornais cem anos depois que floresceram no final do século XX.

Depois que a Família Nichols – obituaristas entusiastas por três gerações – perdeu o controle do Gentleman’s Magazine nos anos 1850, foi um novo jornal diário, The Times, (fundado em 1785) que pegou a batuta. Durante muitos anos foi o único jornal em que se podia encontrar obituários. No seu apogeu, o The Times era ao mesmo tempo um governo alternativo, como um trovão entregando sua mensagem através de seus artigos diretamente a Downing Street, sede do governo britânico e também uma universidade do quarto Estado, comandando por meio de seus vários suplementos (The Times Litterary Suplement começou a ser publicado em 1902, o The Times Educational Suplement em 1910), verdadeiras baterias de especialistas que entendiam do assunto.

É lugar comum no entendimento de muitos leitores de jornais que todos os obituários sejam escritos de antemão, que todas as pessoas que tem sorte ou mereçam ser incluídas no obituário tenham sido primeiro designadas ao jornal por um anjo arquivista, como o Abou Bem Adhem de Leigh Hunt. Se isto algum dia se aproximou da verdade, foi na primavera dos obituários do The Times, nos dias em que o jornalismo anônimo estava em sue apogeu, quando as resenhas literárias do The Times Litterary Suplement eram publicadas anonimamente, quando as páginas de entretenimento “produzidas por nossos próprios correspondentes” faziam nos sentir seguros como se estivéssemos em nossa casa. Com a primeira página sem notícia (dando orgulho, é preciso notar, às suas celebradas colunas de nascimentos, casamentos e mortes), The Times dispunha de autoridade. Era como a antiga Gentleman’s Magazine, um jornal para arquivos de história, superior aos outros jornais. Quando o povo condenou o jornalismo de podridão, excluíram o The Times. A sala 2, aquela que foi ocupada por Graham Greene em 1926, descendo direto de Oxford, era ainda um lugar de cavalheiros. O fogo queimava vagarosamente na lareira. Ninguém nunca renunciou ou foi mandado embora daquela sala.

Dado que “top people” liam o jornal, nas palavras mesmas de seu slogan exclusivo, os “top people” organizavam obituários de outros “top people” para suas colunas de obituários. The Times era um jornal governista na sua prática e no seu instinto. Os servidores públicos cuidavam de seus obituários, as Universidades de Oxford e Cambridge indicavam sentinelas especiais para organizar seus obituários. O problema inerente á prática de indicar jornalistas para fazer o obituário de certas pessoas antes que elas morram é que aquilo que muitos jornais chamam com o humor das escolas de medicina de “sala de espera” necessita um constante dever de casa. As informações envelhecem por causa de novos fatos ou simplesmente evanescem sob o sol. Na medida em que o tempo passa, todas as bases sob as quais estes obituários foram escritos mudam e os mesmos se tornam impublicáveis em um outro tempo. Enquanto o The Times estava gordo e bem provido, enquanto a famosa sala 2 estava ainda ocupada por cavalheiros, tudo ia bem. Os anjos do arquivo cumpriam sua tarefa, os especialistas anônimos do The Times Litterary Suplement passavam os olhos sobre suas velhas cópias, o majestoso período do jornalismo anônimo (ocasionalmente alternado por um “escrito por um amigo” ou por um conjunto indecifrável de iniciais) oferecia um imperioso e impressivo Ave atque vale. O editor mantinha um vivo interesse em tudo.

Durante aquela idade de ouro do jornalismo anônimo, antes que o The Times mudasse (os dias em que o The Times poderia ficar satisfeito em se dirigir a uma pequena elite nacional já se foram, anunciou Sir William Haley). Em 1966 o The Times retirou sua coluna de obituários da primeira página e ao “Nosso correspondente próprio” foi permitida a vaidade de uma identidade pessoal, os obituários do jornal eram imbatíveis. De fato, nenhum outro jornal ousava concorrer com o The Times. Mas o jornalismo sem assinatura é uma arte e um ofício, como qualquer outra arte e ofício e, como os vários elementos que compõem um jornal sucumbiram ao jornalismo assinado, o mesmo aconteceu com os obituários. Por último, com as matérias principais do jornal sendo assinadas, o último sobrevivente do velho estilo começa a adoecer. É cada vez menor o número de pessoas que consegue escrever em Mandarin formal e o compromisso com a “sala de espera”, tão necessário para o sucesso da coluna, diminuiu. Os conhecedores dos velhos obituários do The Times podem certamente colocar um ponto marcando o momento em que a narrativa oficial termina e outro escritor ou subeditor enche lingüiça até o fim da narrativa em qualquer obituário preparado de antemão.

Independent não foi o primeiro jornal britânico em formato standard a trazer obituários assinados, mas foi o primeiro a estabelecê-lo. O primeiro a reservar um espaço regular em suas páginas diárias para os obituários assinados, o Guardian, por muitos anos antes de sua morte, trazia impecáveis apreciações assinadas por Neville Cardus, como unidades redacionais ocasionais em suas páginas de informação.

Se todos os aspectos do jornal precisam ser repensados, o que dizer então dos obituários? Se você tivesse que começar uma coluna de obituários do início, o que você faria?. Quando esta questão me foi colocada em maio de 1986, a resposta parecia obvia. Não fazia sentido competir com o The Times em seu próprio território. O The Times tinha uma longa tradição, seu banco de obituários preparados de antemão era reconhecidamente grande. O Independent tinha que fazer algo diferente: precisava buscar uma nova audiência, preparar uma nova agenda. Era preciso transparência. Obituários precisavam ser assinados. Não poderiam ser escritos por amadores, como um exercício de jornalismo, mas por pessoas que sabiam do que estavam falando, companheiros da pessoa falecida ou especialistas no campo. Isto daria aos obituários valor histórico e veracidade.

Os obituários precisam ser escritos, mais que construídos. Muitas vezes os obituários não são nada mais do que um quem é quem. Os obituários precisam responder a grandes questões: por que esta pessoa será lembrada? Porque esta pessoa merece ser lembrada? Como era esta pessoa? Não podem apenas atolar em um pântano de cronologias. Esses detalhes serão apresentados na periferia da narrativa. A respostas às grandes questões tornam os obituários atrativos e até mesmo entretenedores. É material para os leitores comuns, não apenas para velhos.

Do mesmo modo, obituários deveriam ser ilustrados. Atrevidamente ilustrados. O máximo que se tinha no passado era a foto da cabeça do falecido. Porque não tratar os obituários do mesmo modo que tratamos as outras unidades redacionais dos jornais? Se um pintor morre, porque não mostrar uma de suas pinturas? Se um arquiteto morre, porque não mostrar um dos edifícios arquitetados por ele? Se morre um arqueologista, porque não mostrar as escavações em que trabalhou? Se é um político, porque não puxar uma fotografia dos arquivos com algumas de suas realizações? Um boxeador atingindo o adversário, um domador de cães colocando o cachorro em seu passo, um roqueiro agarrado em sua guitarra. Estas imagens geralmente iluminam outras páginas do jornal, porque nunca iluminam os obituários?

Quem está apto a ter um obituário publicado na página do jornal? Quando o The Times era dono exclusivo deste campo, os “top people”, aquela “pequena elite nacional” sabiam que eram dignos de um obituário. Era digno de obituário quem participava da vida nacional. Havia até um sistema hierárquico: funcionários públicos, diplomatas, forças armadas até um certo nível, membros do Parlamento, diretores de escolas públicas, gerentes de empresas, jogadores de cricket. São os mesmo critérios usados para decidirem quem será admitido no Quem é quem:  um véu de segredos, mas nada imprevisível nem intrinsecamente interessante. Claro que um jornal moderno pode ser menos bairrista, mais aberto e encontrar os seus minute names, nas palavras de Leslie Stephen, fora das páginas do Kelly’s Handbook ou da Lista de Diplomatas.

Em julho de 1986, passei a trabalhar no Independent como editor de obituários. Naquele mesmo mês Hugh Montgomery-Messingberd passou a fazer parte do staff de obituários do Daily Telegraph, e se tornou editor de obituários seis meses mais tarde. Observo que fomos os dois primeiros editores de obituários a se apresentar voluntariamente para este serviço no jornalismo britânico. Nós dois viemos de longa carreira profissional, ele do Burke’s Peerage e eu de um velho vendedor de livros antigos em Oxford, poderiam rir de nós, mas as qualificações para o serviço e a antiga arte histórica de escrever obituários eram imbatíveis em nós. Se peguei minhas inspirações do velho Gentleman’s Magazine e do eficiente, surpreendente e perdurável Diccionary of National Biography, Massingberd herdou suas gloriosas e anedóticas vidas de John Aubrey, um antiquário do século XVII.

Se o Independent tinha como missão fazer alguma coisa nova, abrir e desmistificar seus obituários, dar a eles, pela atribuição de autoria, valor e pluralidade de vozes, o Telegraph sob Messingberd (que se aposentou em 1994) tinha como missão subverter o tradicional obituário por dentro. O entusiasmo pessoal de Massingberd por dinastias longas, atrizes poderosas e por excentricidades de habitantes rurais afetou acentuadamente suas colunas e seus colaboradores (ainda anônimos). Um inesperado vigor, uma certa hilaridade sepulcral, poderia ser detectada entre suas antigas despedidas fúnebres. Se antes era disparado um pequeno tiro quando morria algum major (obituário padrão do Telegraph) agora, raramente se passa um dia sem que um longo encômio (um ‘bigode’ no jargão jornalístico do Telegraph) de alguém que venceu a guerra seja publicado. Adicionados de um fantástico apelido, suas citações transcritas de forma completa, além de alguns fatos hilariantes sobre sua vida.

Houve tempos em que os feitos de um deplorável nobre seriam tratados de forma tão obscura pelo The Times que somente um especialista em códigos criptográficos poderia decifrá-los. Hoje, o Telegraph os trata de forma tão plana e clara que o obituário pode até ficar parecendo uma piada bem elaborada. O terceiro Lord Moynihan (um reles dono de bordel, indicado para um obituário somente por causa do título) recebeu o que merecia em 1991. “Se existia um princípio norteador na vida de Moynihan, informava o Telegraph, deveria este princípio ser encontrado na parede de seu escritório em Manila onde uma placa de bronze trazia os seguintes dizeres: dos 36 modos de evitar um desastre, fugir dele é o melhor.”

Os obituários de Massingberd se revelaram como uma subversão do eufemismo. Para muitos leitores, um dos charmes dos obituários era a linguagem deliberadamente obscura e opaca. Os devotos das palavras cruzadas do The Times e do Telegraph rapidamente aprenderam a linguagem de sinais criptográficos. Para os não iniciados, o obituarês era apenas uma língua de desvios e enganos. “Vivaz” significa bêbado. “Fã de mulheres” implicava uma miríade de amantes e assim por diante. “Ele nunca se casou” era a última frase de um obituário com finalidade duvidosa. Tendo sido ou não homossexual, poderia esta frase dar a entender que ele era um homossexual hiperativo?. Nas ocasiões em que o The Times desrespeitava suas próprias regras e declarava que Robert Helpmann era um “homossexual proselitista”, aconteceu uma fúria da parte dos leitores. Ninguém estava habituado com uma linguagem direta assim em obituários. Além disso, dado que a coisa era contenciosa, (os amigos de Helpmann discutiram à exaustão o termo “proselytising”), aquilo parecia um insulto. Como o obituário não era assinado, não havia com quem discutir.

Com o advento do obituário assinado que teve início formal com o Guardian a partir de sua reforma gráfica de 1988 e desde então adotada por jornais desde Edingburgh até Melbourne, as duas correntes encorajam uma à outra a discutir o mérito da questão. A corrente mais antiga dirá que os obituários assinados são por natureza laudatórios porque representam somente o que uma única pessoa conhece sobre o falecido e que o escritor será, por gravar no final a sua assinatura, tão condescendente que nada além de elogios e tributos sairá de sua caneta. Argumentam que o obituário será escrito com um olho na família do falecido e não com um olho nos leitores e na posteridade nacional. É claro que isto é um perigo. Não há nada pior que um tributo do tipo “ele era uma pessoa maravilhosa” e ninguém se interessará em saber que “ele fará muita falta”. Mas a outra corrente irá argumentar que se isto acontece, a falta é do editor e não um colapso da regra.

A mesma corrente irá defender que há poucos falecidos que mereçam mais que um obituário anônimo de terceira classe, mecânico, uma espécie de trabalho feito por um comitê e que não precisa prestar contas a ninguém. Obituários de terceira classe são imperdoáveis. Os de segunda classe, dada a natureza do jornalismo diário, são melhores do que não publicar nada e, defendo eu, os melhores obituários assinados sempre ganham dos melhores obituários anônimos. É aquele tipo de escrito que os leitores recortam e arquivam e aos quais os historiadores fazem referência. Obituários anônimos, fora as antologias de natal, estão condenados a se tornarem apenas itens de curiosidade ou anedotas históricas.

Quem merece um obituário em um jornal de circulação nacional? A resposta é a mesma de 1731 ou de 1791. Qualquer um que seja importante (“eminente” como diria o Gentleman’s Magazine) ou qualquer um que seja, de alguma forma, interessante. As duas categorias oferecem um rol de possibilidades ao editor de obituários. Mesmo nos tempos em que o The Times não tinha nenhum concorrente, apenas alguns daqueles que apareceram em seus obituários eram pessoas sem importância. Além disto, cada jornal tem um tipo distinto de leitor, com gostos muito variados. Uma das virtudes do mercado britânico de jornais é o fato dele acomodar quatro jornais publicados em tamanho standard e cada um deles poder dedicar amplo espaço aos obituários. Cada um desses jornais publica de três a cinco obituários por dia, e muito raramente sobre a mesma pessoa. Muitos falecidos nunca serão cobertos por mais de um jornal. Enquanto aqueles que, por sorte, por vontade ou por merecimento serão cobertos por mais de um jornal, a cobertura será feita por diferentes ângulos. O Independent tem uma regra geral que diz que nenhum colaborador pode escrever um obituário para a mesma pessoa para ser publicado em outro jornal porque se alguém merece aparecer nos jornais, certamente mais de uma pessoa poderá escrever sobre ele.

Faz diferença a data em que o obituário é publicado? Provavelmente faz menos diferença para os leitores que para os jornalistas que habitualmente lêem mais de um jornal e são por natureza apaixonadamente competitivos. Claro que há um grande prazer em publicar “Fulano de Tal, que faleceu ontem”, mas isto nem sempre pode acontecer. Há uma tendência, se o jornal levou uma barriga, isto é, se foi “furado” por outro jornal, a não se preocupar se o obituário do “Fulano de Tal” seja publicado com atraso. Na prática, a maioria dos jornais prefere publicar o obituário na semana ou no mês do falecimento e, no pior dos casos, dois meses depois. Mas há um jornal, o Telegraph, que dá a volta por cima não informando a data do falecimento.

Morte. Não seria o universo dos obituários algo muito mórbido? Não na Inglaterra. A morte é apenas uma ocasião para o obituário. O sinal de que uma pequena biografia deve ser publicada. A morte em si é raramente mencionada. A causa da morte, a não ser que seja muito importante para a narrativa, não é sequer sugerida. Obituários são documentários de vidas, não de mortes. O único cuidado necessário, em muitos casos não chega a ser uma severa proibição, é a cortesia e a polidez com os sobreviventes.

Nos Estados Unidos a coisa é conduzida de forma diferente. A polidez e a cortesia são levadas ao extremo. A maioria dos jornais americanos são ainda jornais locais, sem aquela curiosa desterritorialidade de que goza Fleet Street em relação aos seus leitores, e, por isso, tendem à fórmula. Só quando se trata da causa da morte é que são mais liberais. Na Inglaterra, confidências médicas são levadas com o morto para a cova, atestados de óbito não são providenciados imediatamente e as pessoas morrem “depois de um longo sofrimento” ou “tranquilamente durante o sono”. Nos Estados Unidos, os mínimos detalhes são cuidadosamente anunciados já nas escadarias dos hospitais no momento em que a pessoa expira. “Fulano de Tal” morreu de um colapso do pâncreas, complicado por uma isquemia e uma severa doença cardíaca.” Faz alguma diferença saber isto?

Até mesmo o único jornal norte-americano com fama internacional por seus obituários, The New York Times, sofre com a lembrança de seu antigo escritor-chefe de obituários, Alden Whitman. Ele recebeu uma reputação caricatural como o Mr Bad News. Isto chegou a tal ponto que todos os obituaristas acabaram recebendo má fama. Whitman tinha a mania de, ousado como você imagina, entrevistar aqueles que seriam suas futuras personagens de obituários. Entrevistou o Presidente Harry S. Truman, o Sir Anthony Eden, o escritor Graham Greene, para seus futuros obituários. Depois de uma dessas visitas, Alger Hiss o chamou, com toda razão, “o anjo da morte”.

Na verdade, os obituários deveriam lidar muito pouco com a morte. São, na maioria, celebrações de vidas simples, vidas bem vividas, não a vida dos grandes, mas vidas do povo, em seus vários aspectos. Os obituários abrem clareiras em aspectos da vida que dificilmente são tocados pela imprensa regular. Na segunda-feira pode ser o obituário de um dono de uma garagem de bicicletas; na terça, o de um atleta campeão de saltos à distância que se tornou fundador de um asilo; na quarta, o de um especialista em câncer de garganta, ou de um vendedor de bibelots na praça central, ou de um mágico e suas cartas de baralho. A larga gama de cobertura obituária nos jornais britânicos é a sua grande gloria. Ali se encontra um rico material para o leitor que pode estar chateado com a agenda de notícias nacionais e internacionais e também para o historiador. Foi isto que Rafael Samuel, aquele ardente devoto da arte dos obituários, chamou de “vegetação rasteira da história”, plena de evidências empíricas, uma fonte primária para a posteridade.

Quando me perguntam sobre quais obituários eu tive maior orgulho em publicar no Independent, não penso na magna opera – políticos escrevendo sobre políticos, um vencedor do Prêmio Nobel de Biologia escrevendo sobre outro vencedor do mesmo prêmio ou sobre aquele obituário raro de um matemático que deu ao outro um insight para se tornar um gênio – porque todos estes obituários parecem de alguma forma óbvios, um mero teste de eficiência profissional. Eu penso nos membros da multidão que talvez nunca tiveram obituários escritos sobre eles se o Independent, seguindo a luz acendida pelo Gentleman’s Magazine, não tivesse aparecido com seu projeto de obituários. Penso todos os fotógrafos, monges, designers de capas de livros, fabricantes de cadeiras, grafiteiros, saxofonistas de jazz, lexicografistas, cartonistas, editores de romances populares, atores de bonecos, imitadores, rendeiras, bombeiros, professores do ensino fundamental, pintores de paredes. Penso em Tom Forster, 91, o mais velho encanador em atividade na Inglaterra. Penso em Roly Wason, 91, professor de Arqueologia que depois se tornou motorista de ônibus em Hartlepool e que morreu justamente no momento em que estava aprendendo a lidar com a internet. Penso no Dr John Wilkinson, 101, hematologista, inventor e pioneiro do movimento dos escoteiros e que na Segunda Guerra Mundial treinou escoteiros para desarmar bombas. Penso em Mr Sebastian, 63, piercer e tatuador, para quem “se a visão de um piercing era estranha”, tentava repetidamente nele mesmo até que conseguisse fazer a coisa certa. Penso em Winifred Wilson (winnie the Hat), 88, vendedor dos quadros de Walter Sickert (sou ainda o melhor neste negócio, dizia). Penso em Eleanor Stragnell (Granny Strugles), 106, governanta que se tornou missionária entre os índios Mapuche no Chile. Penso em Donald MacLean, 66, que por 25 anos foi diretor do Crieff Highland Gathering (a maior colecionador privado de batatas). MacLean colecionou em sua horta 367 variedades de batatas e as vendia por quilo ou às vezes somente por litro. Escreveu sua obituarista, Jane Grigson, em 1988:

Quando as pessoas chamam ao telefone para fazer um pedido, primeiro ele conversava um pouco com elas para ver se eram merecedoras das batatas. Uma espécie de teste de caráter, como se tivessem procurando crianças para adoção. Ele acreditava que se as pessoas aprendessem que qualidade existia em uma pequena esfera da existência, eles estariam aptos depois para reconhecer as qualidades em qualquer outra coisa – televisão, livros, política, comportamento social. Estes objetivos estavam por trás de seus infinitos pedidos de pequenas porções de batatas. A salvação pela batata.

E, é claro, ele estava certo.





Como citar:
FERGUSON, James. A morte e a imprensa. Tradução de Paulo da Rocha Dias. In: GLOVER, Stephen. The Penguin book of Journalism: secrets of the press. London: Penguin Books, 1999. p. 148-160.

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