Ralph L. Lowenstein
O noticiário representa para o jornalista seu pão de cada dia. E para mim, pelo menos, a crônica representa a sobremesa. Ela permite ao jornalista afastar-se do controle frio, analítico e objetivo do noticiário e trabalhar com o coração. Dá-lhe a oportunidade de ser subjetivo, emotivo, terno, e, acima de tudo, criador.
Acredito que também o leitor tenha um carinho semelhante
pela crônica. Entre aquela densa floresta de política, finanças e crimes, a
crônica surge como um raio de luz.
Minha inclinação para a crônica começou no curso de crônicas
orientado por Allan Keller na Escola Superior de Jornalismo da Universidade de
Colúmbia. Em quase todas as aulas, o Prof. Keller nos fornecia dados para um
trabalho de crônicas. Havia duas regras primordiais a serem obedecidas: não nos
era permitido alterar os fatos básicos que o professor nos dava e tínhamos que
escrever a história sob a tensão de um prazo de entrega marcado.
Era extremamente importante para o nosso treinamento que se
obedecesse a essas duas regras. Aprendemos, de início, a utilizar ao máximo
nosso talento criador, mantendo-nos, porém, dentro dos limites da verdade e do
tempo – limites esses necessários a qualquer repórter bom, esteja ele
escrevendo o noticiário ou as crônicas para um jornal de responsabilidade. Ficamos
cientes de que não éramos escritores de ficção e que representávamos
simplesmente o meio através do qual um ser humano podia partilhar seu estado de
espírito, expressar sua filosofia ou escrever seu epitáfio. Raro é o jornal que
mantém em seu quadro um jornalista apenas para escrever crônicas. Os secretários
de jornal esperam, muito razoavelmente, que todos os repórteres sejam capazes
de perceber quando o assunto é apropriado para uma crônica e de escrevê-la
quando ele surge.
Numa ocasião, que veio a ter a maior importância em minha
carreira, recorri à crônica, não porque fosse o meu gênero preferido, mas
porque a situação que eu tinha que descrever era tão fria e implacável que só
mesmo uma crônica poderia colocá-la de forma a haver um contraste adequado.
Quem trouxe a história para The El Paso Times foi um
padre católico de uma das paróquias mais pobres da cidade. Tratava-se do caso
de uma família que estava separada pela fronteira entre o México e os Estados Unidos.
A família, formada pela mãe, pai e sete filhas, estava dividida pela aplicação
rigorosa de uma lei severa, a Lei de Imigração McCarran-Walter, de 1952.
A Sra. Juan Valadez, mexicana casada com um cidadão americano,
fora deportada para o México há quatro anos. Um funcionário, encarregado de
julgamentos especiais, do Serviço de Imigração e Naturalização dos Estados
Unidos, decidira que a Sra. Valadez incorrera em falso testemunho quando, ao
solicitar um passe de travessia de fronteira, declarara não ter intenção de residir
permanentemente nos Estados Unidos.
A Sra. Valadez era uma mulher simples, sem instrução, que
não poderia nem entender o que seria falso testemunho. No entanto, sem lhe dar
a assistência de um advogado, o Serviço de Imigração e Naturalização dos
Estados Unidos agira como promotor, juiz e júri no seu caso. O falso testemunho
é um crime. Segundo a Lei de Imigração McCarran-Walter, qualquer estrangeiro
considerado de um crime tem que ser deportado e não poderá nunca mais ser
recebido nos Estados Unidos. Nos quatro anos que se passaram, desde que fora
deportada, fizeram-se três apelações para o seu caso. Todas as três apelações haviam
sido julgadas e rejeitadas pelo mesmo funcionário que da primeira vez a
considerara culpada de falso testemunho.
Juan Valadez, o marido, um operário com um salário de 48
dólares por semana, ocupava um apartamento de uma peça só, em El Paso, com as
quatro filhas mais velhas. Dessa forma ficava perto de seu trabalho e as quatro
meninas podiam frequentar as escolas públicas americanas. Sua esposa morava num
outro apartamento de uma peça só em Juarez, México, com as três filhas menores.
A família achava que estava de sorte quando conseguia se reunir uma vez por
semana, aos domingos, em Juarez.
Era difícil acreditar-se que uma lei tão dura fosse aplicada
nos Estados Unidos. Mas os funcionários do Serviço de Imigração e Naturalização
confirmaram o caso. A Sra. Valadez, informaram eles, confessaram que mentira ao
assinar o juramento do passe de travessia (ela, na verdade, tinha esperança de
um dia vir a fixar residência nos Estados Unidos). Mentir sob juramento era
incorrer em falso testemunho. O falso testemunho era um crime e um crime exigia
que ela fosse permanentemente afastada dos Estados Unidos. Era uma pena que uma
família tivesse que ficar assim separada, disseram eles. A Lei McCarran-Walter
era dura e impiedosa, concordaram eles conosco. Mas eram obrigados a aplicá-la.
O padre católico contou-nos essa história uns dias antes do
Dia das Mães. Para causar um choque bem grande o The El Paso Times
colocou meu artigo na primeira página da edição do Dia das Mães. O artigo era
ilustrado por duas fotografias, uma que mostrava a metade da família moradora
de El Paso e a outra metade que ficava em Juarez. Meu artigo começava assim:
“O Dia das Mães será mais ou menos igual a todos os domingos
do ano para o Sr. Juan Valadez, sua esposa e suas sete filhas.
A família estará reunida na única peça de um apartamento na
Calle Azucenas 1118, do outro lado do rio, lá em Juarez.
Mas ao se aproximar o anoitecer de domingo, a reunião da família
Valadez chegará ao fim e terá início mais uma semana de separação”.
A história causou um impacto fortíssimo em muitos habitantes
de El Passo. Entre os muitos telefonemas que recebemos, os de maior importância
foram os de advogados que nos vieram informar que a família Valadez não era a única
a estar separada. Havia centenas de outras famílias, somente na zona de El
Paso, que também estavam separadas. Esses advogados dispuseram-se a nos dar os
nomes e a citar os casos.
O The El Paso Times publicou uma série de mais quatro
artigos sobre famílias separadas. Um advogado de El Paso preparou uma nova
apelação para a Sra. Valadez, dirigindo-se dessa vez a Corte de Apelações da
Imigração em Washington, D.C. O Deputado Federal de nosso distrito de West
Texas ofereceu-se para comparecer pessoalmente diante da Corte e sustentar a
apelação da Sra. Valadez.
Algumas horas antes da apelação ser levada à Corte, o
Diretor do Serviço de Imigração e Naturalização dos Estados Unidos mandou que fosse
concedida à Sra. Valadez uma “permissão condicional de prazo indefinido” para
ficar nos Estados Unidos. O Diretor declarou que os artigos do The El Paso
Times é que o haviam posto a par dos aspectos humanos do caso Valadez. Ele,
com essa maneira de agir, abriu o caminho para que outras famílias pudessem se
reunir aproveitando a mesma “permissão condicional de prazo indefinido”, método
esse nunca antes utilizado para contornar os problemas técnicos da Lei McCarran-Walter.
No primeiro ano que se seguiu à solução do caso Valadez, mas
de 300 famílias reuniram-se novamente graças à “permissão condicional de prazo
indefinido”. No fim do ano de 1956, a regra da “permissão condicional de prazo
indefinido” foi utilizada para permitir a entrada nos Estados Unidos de 15.000
refugiados húngaros que de outra forma não poderiam fazê-lo. Desde então,
centenas de outras famílias “separadas” puderam se reunir, recorrendo-se ao
método utilizado pela primeira vez no caso Valadez. Mas muito mais importante
do que isso é o fato de que, desde aquela ocasião, o Serviço de Imigração e
Naturalização reluta em dividir uma família. A compaixão influencia agora a
aplicação de uma lei que continua a ser muito severa.
A série de artigos que escrevi sobre o caso Valadez fez com
que me fossem concedidos diversos prêmios. Um deles, o Prêmio”Pall Mall Big
Story”, mostrou-me como uma história pode ser modificada uma vez que se
transpõem as barreiras da verdade. (“Lembrem-se”, costumava nos dizer Allan
Keller, “não alterem os fatos”). No show da televisão, transmitido em todo o
país, fizeram uma série de modificações espantosas. As sete crianças foram
reduzidas a duas. A mãe transformou-se numa cantora chorosa de baladas
mexicanas que se acompanhava no violão. O padre foi quase inteiramente esquecido.
Puseram o repórter praticamente morando com a família Valadez, dando-lhes
conselhos e animando-os sem cessar. (Ainda que não seja nada dramático,
acontece que nunca vi a família Valadez e nem outra qualquer das famílias separadas.)
Não tenho aqui a intenção de criticar os escritores e
produtores de televisão. Eles agiram da melhor forma possível para o seu setor.
Sete crianças não poderiam caber convenientemente dentro de uma tela de 21
polegadas da mesma forma que os detalhes de um caso bastante complicado não
caberiam num programa de meia hora. Já reparei que o pouco tempo de que se pode
dispor num programa de rádio ou televisão e o pequeno espaço disponível nas
revistas são mais responsáveis pela distorção da verdade do que um possível
desejo de modificá-la. O espaço que se pode utilizar dia após dia num jornal
permite uma reprodução mais precisa da vida como ela realmente é.
Na minha opinião, e sem falsa modéstia, acredito que o fato
de serem atribuídos a mim prêmios por causa da série Valadez é devido à falta
de uma perspectiva correta. Achei naquela ocasião, como continuo a achar, que o
Padre James Loeffler merecia muito mais prêmios do que eu. Os meus artigos
vieram simplesmente dar volume ao seu sentimento de piedade e indignação e
projeção às famílias que haviam sido separadas.
O que me deu uma grande emoção e alegria foi saber que a
família Valadez seria novamente reunida e que mais tarde centenas de outras
famílias ficariam novamente juntas. E junto com essa alegria veio também a
certeza de que a crônica pode ser mais do que uma sobremesa no trabalho
jornalístico e que, por ter que se ater à verdade, pode ser uma arma poderosa
em favor da mesma.
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