Sergio Vilas Boas
1
Gênero nobre do Jornalismo Literário[1], o perfil é um tipo de texto biográfico sobre uma – uma única – pessoa viva, famosa ou não. Texto biográfico não significa exatamente biografia, que é outro gênero. Nem tudo o que é biográfico é biografia, aliás. A biografia é uma composição detalhada de vários “textos” biográficos (facetas, episódios, convivas, pertences, legados, o feito, o não feito, etc.).
Diferente das biografias de mortos, nas quais os autores tem
de enfrentar os pormenores da história do personagem – às vezes tendo de
contemplar até as suas ancestralidades e ocorrências póstumas –, o autor do
perfil de um individuo vivo se concentra apenas em alguns aspectos. A similaridade entre biografia e
perfil reside no fato de que, em ambos, tudo gira em torno do personagem
central (evito a palavra perfilado).
Cada ser humano tem um perfil, assim como cada perfil só pode
ser sobre um ser humano. Se a individualidade fosse banida do mundo e os
humanos não passassem de robôs programáveis, sem estilo nem identidade, o texto
do tipo perfil simplesmente não existiria. O perfil expressa a vida em seu
contexto. Atém-se à individualidade, mas não se restringe ao individualismo
anedótico, folclórico, idiossincrático.
A palavra perfil tem
sido usada indiscriminadamente. Colocam-na antes de qualquer coisa. Mas, para
mim, jornalisticamente falando, não existe perfil de cidade, perfil de bairro,
perfil de um edifício, perfil de uma época, perfil de um grupo, perfil de um
cão (na ficção, sim), etc. Em jornalismo, o ponto de vista é sempre o humano.
Lugares, animais, grupos, etc., por mais vivos – por mais
marcantes que sejam as suas culturas, personalidades e almas –, nada verbalizam
por si mesmos. A cultura, a personalidade e a alma de um lugar, de um animal ou
de uma comunidade são o resultado da doma das interpretações, versões,
percepções – linguagens, enfim – humanas.
Claro que você pode fazer uma reportagem ou uma crônica sobre
um lugar, um edifício, uma época, e tentar desvendar a cultura, a personalidade
e a alma do tal lugar, do tal edifício, de tal época. Mas aí ou é reportagem,
ou crônica, ou um híbrido de cunho autobiográfico. Perfil, não. O perfil (em
forma de texto escrito) possui parâmetros específicos, como veremos.
Na tradição clássica do Jornalismo Literário, o texto-perfil[2] é relevante por sua durabilidade e
narratividade. Mesmo que
meses ou anos depois da publicação o protagonista tenha mudado suas opiniões,
conceitos, atitudes e estilo de vida, o texto pode continuar despertando
interesses. Quanto à narratividade, ela se expressa por uma estruturação bem
calculada e uma escrita predominantemente reflexiva.
2
Entre os bilhões de terráqueos vivos, quem merece um perfil?
Sendo de indivíduos sobre indivíduos, é muito difícil estabelecer critérios.
Potenciais personagens estão por toda parte. No entanto, ninguém é personagem
de uma narrativa pelo simples fato de estar vivo. Para se tornar personagem de
um perfil, são necessários dois processos antecedentes: o autor escolhe uma pessoa
(ou ser escolhido pela pessoa) e o “convite” ser aceito.
Quanto ao ato da escolha, trabalho com os seguintes
pressupostos: 1) o ser humano é irrepetível mesmo quando totalmente submisso ou
alheio à ordem social à qual pertence; 2) há indivíduos que se diferenciam da
multidão por suas atitudes e/ou pensamentos, independentemente de serem
conhecidos da mídia, de possuírem hábitos exóticos, de serem bem difíceis de
lidar ou de terem experimentado viradas mirabolantes em suas vidas.
Outro aspecto importante: o problema de narrar não é do
personagem, e sim do autor do perfil. Por incrível que pareça, o personagem em si não é
decisivo para a qualidade da narração, mas, sim, a competência do autor em
lidar com o personagem e a narração. Escapismo justificar que o
personagem é isso, aquilo, comum, igual, anônimo, caladão, etc.; ou que a
história dele/dela é fraca e que, “por isso, a coisa não funcionou entre nós”.
Pare com isso.
O problema de narrar é sempre do autor. De ninguém mais.
Condição sine qua non em um perfil é a interação
autor-personagem, seja quem for. Você deve estar pensando: “Ah, mas o Gay
Talese fez aquele antológico perfil do Frank Sinatra sem falar com o Frank
Sinatra”. Certo, certo. Mas considere que Talese queria muito falar com o
Frank; e cite, se for capaz, outro perfil antológico em que o autor não se
relacionou com o protagonista.
Talvez você encontre algum em um obituário, seção periódica
fixa muito valorizada na imprensa anglo-saxônica. Mas as seções de obituários
são (têm de ser) sobre mortos. A arte do perfil (arte no sentido de um fazer
tal que, quando faz, altera o fazer, pois não comporta fórmulas) reside
exatamente na vida
presente que possui um passado.
Para produzir um bom perfil, é preciso pesquisar, conversar,
movimentar, observar e refletir. Tudo dentro do possível, claro, pois cada caso
é um caso. Você tem de pesquisar os contextos socioculturais da pessoa; conversar com ela e com as
pessoas de seu círculo de relacionamentos; movimentar-se com ela por locais diversos; tem de observar as linguagens verbais e
não verbais.
Há uma grande
diferença entre o texto-perfil e as entrevistas do tipo pingue-pongue. Perfil não é debate. Autores que
ficam paralisados diante do personagem, bombardeando-o com questões muitas
vezes irrespondíveis, deveriam reavaliar seus métodos. Os perfis elucidam, indagam, apreciam a vida num
dado instante, e são mais atraentes quando atiçam reflexões sobre
aspectos universais da existência, como vitória, derrota, expectativa,
frustração, amizade, solidariedade, coragem, separação, etc.
Os perfis cumprem um
papel importante, que é exatamente gerar empatia no leitor. Empatia é a preocupação com a
experiencia do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse
nas mesmas situações e circunstâncias do outro; compartilhar as alegrias e
tristezas do outro; imaginar as situações do ponto de vista do outro.
A escrita de perfis me ajudou a me conhecer melhor e talvez
tenha ajudado os meus leitores a se verem por um ângulo diferente. Humanizar
não é um mistério. É uma providência simples. O primeiro passo para humanizar é
fugir do ideal da perfeição e evitar maniqueísmos. Uma pessoa não é isto ou
aquilo. Ela é isto, aquilo, aquilo outro e mais um milhão de istos e aquilos
totalmente imprevistos. Em vez de formular hipóteses, entro no mundo da pessoa
sem preconceitos, suposições ou tese; tento conhecer algumas de suas facetas
(carreira, família, sociabilidade, hobbies, etc.); vou aos lugares que ela
frequenta; capto sua visão de mundo e suas marcas de temperamento; e não
idealizo ninguém, jamais. As pessoas são o que são. E que assim sejam. Evito,
com todas as minhas forças, ser judicativo e duvido permanentemente do meu
“direito” de poder divulgar unilateralmente as qualidades e os defeitos dos
outros.
A ideia de self-made man (ou self-made woman) é
outro ponto importante. Para uma vocação florescer e se destacar, muitos
fatores (mentalidade e cultura de época, condições financeiras, grau de
persistência, apoio de pessoas próximas, autoconfiança e outros) têm de ser
considerados. Atenção,
portanto, para os coadjuvantes.
3
Perfis tem aparecido
ocasionalmente em periódicos (mas não apenas em periódicos) há mais de um
século. A partir da década de 1930, os jornais e revistas começaram a apostar fortemente
neles. No inicio, os
personagens retratados eram os olimpianos do mundo das artes, da política, dos
esportes e dos negócios. Esperava-se que o perfil lançasse luzes sobre a fase
atual, o comportamento, os valores, a visão de mundo e alguns episódios da vida
da pessoa.
Com esse espírito, os perfis se tornaram a marca registrada
de revistas americanas como The New Yorker, Esquire, Vanity
Fair, Harper’s e Atlantic, entre outras. No Brasil, O
Cruzeiro, Realidade e Sr. também valorizaram em suas épocas
áureas. Interessantes, em Realidade, os textos de Luiz Fernando
Mercadante sobre Oscar Niemeyer (jul./1967) e Francisco Matarazzo Sobrinho
(out./1967), e o do falecido psicoterapeuta Roberto Freire sobre o jovem
Roberto Carlos (nov./1968).
O perfil do jovem Roberto espelha os dias de convívio do
jornalista com o astro e com a sua turma, entre shows, gravações, sessões para
escolha de novos compositores, programas de TV, jantares e viagens. “Eu nunca o
havia visto fora do palco e dos vídeos”, assume Freire no texto. “Não eram os
fatos de sua vida pessoal que interessavam, mas seu comportamento diante da
profissão e da popularidade, suas reações de homem diante de tudo o que o
rodeia diariamente”.
Os jornalistas de Realidade eram estimulados a
conduzir diálogos genuinamente interativos. Podiam mesclar informações sobre o
cotidiano, projetos e obras do protagonista com opiniões deste sobre temas
contemporâneos como sexo, família, dinheiro, cultura, economia e política.
Ideias e empatias coexistiam em nome de um retrato o mais nítido possível,
dentro do possível.
O elenco de bons jornalistas norte-americanos (os Estados
Unidos ainda são o principal produtor de Jornalismo Literário) que se dedicaram
a escrever perfis é enorme. Alguns: Lincoln Barnett, Joseph Mitchell,
Janet Flanner, Lillian Ross, Calvin Trillin, Susan Orlean, David Remnick, Mark
Singer, John McPhee, Joan Didion... Vários dos praticantes do chamado New Journalism (nome
dado a um período de grande visibilidade do Jornalismo Literário na década de
1960) honraram o gênero.
Gay Talese, na minha opinião, é um dos mais representativos
da turma norte-americana. Seu “Frank Sinatra está resfriado”, publicado na
edição de abril de 1966 da Esquire, é talvez o texto-perfil mais lido no
mundo. Pelas circunstancias
em que foi realizado, talvez seja mais apropriado dizer que esse texto é a
exceção da exceção, pelo fato de Talese não ter dialogado com Sinatra
diretamente.
Talese desembarcou em Los Angeles para o encontro, mas
Sinatra se recusou a ser entrevistado exatamente porque estava resfriado. Em
vez de retornar a Nova York com as mãos vazias, Talese decidiu ficar nos
arredores à espera de uma oportunidade de ao menos trocar umas palavras com o “The
Voice”, o que tampouco aconteceu. Restou-lhe, então, seguir os passos do
astro por bares, estúdios, programas de TV, cassinos e lutas de boxe.
Estava presente, por exemplo, em uma bar de Beverly Hills,
onde Sinatra bateu boca, sem mais nem menos, com Harlan Ellison, um jovem
roteirista de Hollywood. O diálogo entre os dois foi reproduzido e transmite
não apenas a exaltação de ânimos como o humor intragável de Sinatra, que, além
de resfriado, atravessava uma fase difícil.
Talese mostra como o cantor se relacionava com a sua trupe e
com o mundo; aponta as colisões e coincidências entre as celebridades e os
mortais; relembra e interpreta momentos marcantes da infância em Hoboken, Nova
Jersey, onde Sinatra nascera 50 anos antes. As cenas são orientadas por ações,
descrições, ironias e intimidades obtidas por meio de conversas com pessoas do
círculo de relacionamentos do cantor, além de pesquisas e leituras.
O mais famoso texto-perfil do mundo saiu na Esquire,
mas é a New Yorker, fundada em 1925, que detém o crédito de principal
difusora de perfis. O grande passo da New Yorker foi a contratação de Joseph
Mitchell no final da década de 1930. Mitchell retratou estivadores, índios,
operários, pescadores e agricultores. Está entre os maiores jornalistas
literários de todos os tempos. Os dois textos que escreveu sobre o folclórico,
boêmio e aloprado Joe Gould são primorosos.
Lincoln Barnett, repórter da Life entre 1937 e 1946, é
outro memorável. Barnett contribuiu muito para essa atividade. Na única
coletânea em livro que ele publicou – The world we live in: sixteen close-ups
(1951) –, ele comenta por que e como escreveu alguns de seus principais textos.
Segundo Barnett, o autor
de perfis “tem de se preocupar com a transitoriedade dos atributos,
diferentemente de um biógrafo diante de um famoso morto”.
O Brasil não tem tradição em Jornalismo Literário, e esta é
uma das razões de ainda ser rala a maioria de nossas produções do tipo perfil.
Revistas como Piauí e Brasileiros, surgidas entre 2006 e 2008,
têm ajudado a reduzir um pouco o nosso déficit em relação aos norte-americanos
e hispânicos. Além disso, desde 2002, temos à disposição cursos, livros e sites
que ampliaram nosso entendimento sobre o jornalismo das reportagens especiais.
4
Algumas definições ou conceitos para perfil: Steve Weinberg
os chama de “biografia de curta duração” (short-term biography); Oswaldo
Coimbra, de “reportagem narrativo-descritiva de pessoa”; Muniz Sodré e Maria
Helena Ferrari acham que dever ser chamado de perfil o texto que enfoca o
protagonista de uma história (a história de sua própria vida). O que se deve ter em vista no
perfil, portanto, é o protagonismo.
O protagonismo é um ímpeto eminentemente artístico. A arte
sempre procurou usar personagens para ampliar o conhecimento da natureza
humana. Difícil pensar em literatura, cinema ou teatro sem personagens. Para
nos aproximarmos das boas realizações, portanto, deveríamos nos misturar com a
ate constantemente, nos expor a ela – sobretudo à literatura.
Podemos traçar paralelos com as artes visuais. Pintores,
desenhistas e fotógrafos sabem que os portraits (retratos), por exemplo,
representam um jogo malicioso. Conscientes do problema de obter uma expressão,
muitos fotógrafos deixam que a pessoa assuma uma pose. O fotografo Henri
Cartier-Bresson, por outro lado, perseguia o “instante decisivo”, aquele em que se capta o imutável.
Para E. H. Gombrich, um dos maiores especialistas em história
da arte, são as atitudes do sujeito que constituem a linguagem dos portraits
no âmbito da pintura e da fotografia. Enquanto os portraits expressam, necessariamente,
uma fisionomia, o texto-perfil expressa um modo de pensar/viver. O
texto-perfil é explicitado pela história narrada, com um equilíbrio entre o passado e o presente.
Em principio, não há diferença entre
representar uma coisa vista e uma coisa rememorada – nenhuma delas pode ser
transcrita como tal, sem uma linguagem, “sem aquele domínio da expressão que
Rembrandt fez seu e que é patente de ponta e ponta em sua arte”. Aqui, como
sempre, a memória de soluções coroadas de êxito, as do próprio artista e as da
tradição, é tão importante quanto a memória da observação.[3]
Leonardo da Vinci aconselhava outros artistas a dividir o
rosto em quatro partes – fronte, nariz, boca e queixo – e estudar as formas que
essas quatro partes podem tomar. Uma vez que esses elementos do semblante
humano estejam gravados na mente, concorda Gombrich, pode-se analisar um tosto
com um único olhar – e retê-lo.
As pessoas percebem quando funcionou corretamente o processo
de seleção e recorte (inerente ao portrait e ao texto-perfil). Percebem quando
as partes reveladoras do Eu Essencial do personagem receberam a devida atenção
do artista. Na verdade, a ideia de singularidade em um texto-perfil não tem a
ver somente com a individualidade alheia. a singularidade é importante também
no que tange ao(s) encontro(s) do autor com o seu personagem.
Cada encontro é tão singular quanto decisivo. Os personagens
não são modelos em pose, evidentemente, e a imagem escrita que tento obter deles
tampouco é premeditada. Não posso manipular as palavras, os gestos e os
cenários, e o que capto não se baseia apenas em pensamentos plenamente naturais
ou em atitudes plenamente espontâneas. Na verdade, autores de textos do tipo
perfil estão o tempo inteiro atentos a quatro processos tão fundamentais quanto
indivisíveis: 1) os espaços; 2) os tempos; 3) as circunstancias; 4) os
relacionamentos.
1.
Os
espaços são os locais dos encontros do autor com o protagonista e/ou com as
pessoas próximas a ele/ela. Os espaços ampliam a percepção sobre o estilo de
vida (life style), entre outras coisas.
2.
Os
tempos compõem a trajetória de vida do individuo. Essa trajetória não é
necessariamente linear. O tempo está contido no lembrado (pelo protagonista e
por seus coadjuvantes) e no vivido (autor e protagonista, juntos, aqui, agora).
3.
As
circunstâncias englobam o imponderável. Caso o imponderável afete muito o
processo de pesquisa e os diálogos, o texto então deve refletir também a
consciência do autor sobre o que ocorreu nos bastidores.
4.
Os
relacionamentos (“infinitos enquanto durem”) trazem à tona as expressões
(verbais e não verbais) intrínsecas ao protagonista. Os relacionamentos geram
imagens, possibilitam insights e fixam o que é indiscutivelmente próprio do
personagem.
Os processos criativos são multidimensionais. Neles,
combinam-se memória, conhecimento, fantasias, sínteses e sentimentos, cinco
elementos imprescindíveis ao trabalho autoral. O poeta E. E. Cummings
(1894-1964) dizia que o artista não é um sujeito que descreve, mas um sujeito
que sente. Em um perfil, tanto a pesquisa quanto a narração implicam um sentir,
e sentir é envolver-se. Mas não um envolvimento ideológico, religioso ou
político. De jeito nenhum. Envolver-se, aqui, significa estar aberto à
curiosidade e à surpresa.
5
O texto-perfil publicado, tal qual o portrait visual exposto,
está aberto a interpretações diversas. Pense nas páginas e páginas devotadas à
interpretação do sorriso da Mona Lisa (La Gioconda), de Leonardo da Vinci.
Luxúria? Castidade? Ironia? Ternura? Talvez aquele sorriso não expresse nada
além de um disfarce, mas quanta saudável ambiguidade contida nele, não? Observe
também como as mãos da Mona Lisa sugerem um estado de relaxamento e
concentração simultâneos.
“É verdade que se pode pedir a um modelo que ria ou chore,
mas o resultado obtido será apenas um esgar. É preciso sentir a expressão
humana, e essa só vem no seu instante”, afirma Gombrich. Então, um retrato por
escrito tem de ser construído de modo que as questões interessem tanto ao
leitor quanto ao próprio personagem em foco, evitando armadilhas (ou farsas)
comuns e contrárias à inteligência do público. Algumas delas:
1.
Quando
autor e personagem se tornam oponentes implacáveis, agredindo-se mutuamente,
destruindo qualquer possibilidade de afeto e, consequentemente, de compreensão.
2.
Quando
um ou outro se põe na posição de defesa, a fim de ocultar mais do que revelar,
ou exibir mais do que observar.
3.
Quando
o autor se torna o protagonista sem uma razão justificável para tal. Nesse
caso, perde-se o conceito de texto-perfil, modalidade que aborda o outro – o
mundo do outro.
Em um texto-perfil, a complexidade do personagem pode ser
trabalhada com a ajuda de um conjunto de cuidados. Dou
atenção ao que a pessoa diz a seu respeito e ao que ela diz a respeito de
outras pessoas; dou atenção ao que ela diz a respeito dos acontecimentos
contemporâneos que a afetam de algum modo; e, dentro do possível, tento captar
o que outras pessoas tem a dizer sobre o protagonista (ou sobre algum assunto
correlacionado).
A pessoa fornece também gestos, atitudes e
pensamentos em função da fase que está atravessando. Opero, então, com um
acúmulo de indícios, que podem ou não ser contrastados com dados do passado ou
expectativas de realizações. Há o risco de formulações precipitadas sobre o
temperamento, sobre as ideias e sobre a fase atual do personagem. Mas esse risco é evitável. Na
duvida, concentro-me no que de fato está ocorrendo entre mim e a pessoa.
Nos perfis deste livro, me deixei levar pelo que foi possível
captar por meio de entrevistas e leituras. Os episódios e as circunstancias que
marcam as narrativas se misturam, na medida do possível, com as opiniões dos
personagens sobre temas da atualidade, interpretações acerca do que já havia se
tornado público sobre eles e caracterizações a partir do que me revelaram (às
vezes, sem dizer).
Observar é uma atividade instigante. Tendemos a acreditar que
observar é apenas um exercício de percepção visual. Não é. A percepção visual é
apenas um dos aspectos, igualmente difícil de praticar, pois requer tanta
paciência quanto aquela necessária para se construir um relacionamento
interessante. Sem dúvida, olhar pacientemente não basta.
Os observadores mais atilados fazem uso de todo tipo de
informação sensorial – olfato, tato, audição, etc. Os insights mais importantes
da história da ciência e das artes ocorreram com indivíduos capazes de apreciar
o que os estudiosos da criatividade chamam de “o sublime contido no trivial”,
ou seja, a beleza profundamente surpreendente e significativa das coisas
cotidianas.
Segundo esses especialistas, o caminho para o desenvolvimento
da capacidade plena de observação passa por exercícios diários muitas vezes
desprezados pela razão, como caminhar no escuro, apalpar ou cheirar objetos com
os olhos vendados, tentar adivinhar o que há dentro de caixas e latas pelo peso
e formato e reconstituir os cenários ao nosso redor identificando ruídos.
Mesmo sem treinamento profissional para interpretar
manifestações de caráter e temperamento, não surpreende que bons autores de
textos-perfis ofereçam elementos de comunicação não
verbal. Por meio dela, pode-se compor um conjunto de pistas para que o leitor
tire suas próprias conclusões sobre o personagem. A possibilidade de
descrever o que uma pessoa faz e como ela faz é o que, para mim, torna o perfil
tão interessante de ser praticado e ensinado (sim, eu tento ensinar “a arte do
perfil”).
6
Como fazer o personagem escolhido aceitar o convite? “É
preciso xavecar”, um aluno me respondeu certa vez. Mas... Xavecar não é o verbo
apropriado porque, originalmente, significa “agir de forma vil e incorreta”.
Mas, no dia a dia (em São Paulo, pelo menos), usa-se o verbo xavecar no sentido
de “dar uma cantada”, “convencer”, “persuadir”.
Persuadir é tudo. Então como persuadir a pessoa (famosa ou
não) que você escolheu a dedo? Como a convencer a deixar que você entre no
mundo dela e a transforme em personagem – o personagem do seu texto, o texto
que você está escrevendo? Descubra você mesmo. Apenas relembro que o que
funcionou com um não necessariamente irá funcionar com outro.
Agora, algumas anotações que resumem o que foi abordado até
aqui:
·
Todo
perfil é biográfico e autobiográfico porque também diz algo a seu respeito,
autor.
·
Perfil
não é a palavra final sobre alguém.
·
O
“retrato” nunca será 100% natural nem 100% espontâneo,
·
Encontre
pessoas que agem e/ou pensam de maneira diferente da multidão (leia dica extra,
a seguir).
·
Proponha
o perfil para seu editor/editora somente depois de conhecer um pouco o
personagem que você escolheu. A singularidade é decisiva.
·
Não
idealize o seu personagem. As pessoas são o que são. E que assim seja.
·
Busque
o universal no singular (e vice-versa).
·
Tente
encontrar a sua imagem definidora da pessoa, mas não fique obcecado com a
missão de “tentar definir”.
·
A
narrativa toda tem de girar em torno dele/dela ou não será um texto-perfil.
·
Não
use seu personagem para outros motivos que não o de compreende-lo.
·
Crie
emparia com as pessoas envolvidas no processo. Com todas.
·
Não
imponha ao leitor as suas vagas noções sobre o que constitui uma qualidade ou
um defeito.
·
Ouça
as opiniões de seu personagem sobre o campo em que ele/ela atua.
·
Pesquise
temas correlacionados à história e à atividade da pessoa.
·
Saiba
que você está lidando com lembranças e esquecimentos.
·
Frequente
os lugares que seu personagem frequenta.
·
Procure
pessoas (próximas ou não) que têm algo a dizer sobre o protagonista.
·
Tome
nota do que está ocorrendo nos bastidores.
·
Preste
atenção no verbal e no não verbal. Até o silencio diz muito.
·
É
importante ter muito mais do que realmente poderá ser incluído no texto. Quanto
mais ampla a apuração, mais eficaz a garimpagem.
·
Faça
o possível para examinar/analisar seu material no mesmo dia em que foi
coletado.
·
Escreva
sobre a fase atual do seu personagem. O presente é o que dá a força motriz do
texto-perfil, já que se trata de uma pessoa viva.
·
Mescle
episódios da fase atual com episódios remotos.
·
Selecione
apenas alguns episódios: melhor um episódio bem contado do que dez sinopses.
·
Valorize
o que ocorreu em seus encontros com a(s) pessoa(s).
·
Os
episódios podem estar encadeados por um fio condutor.
·
Forneça
o máximo possível de detalhes relevantes.
·
Narre
as cenas marcantes dos seus encontros com o personagem.
·
Mescle
narração com descrições (físicas e psicológicas).
·
Linguagem:
dê às suas frases todo o polimento que elas merecem. Sempre que possível e
cabível, estabeleça ligações entre o seu personagem e personagens da
literatura, do cinema, do teatro, da TV, dos quadrinhos, etc. Clássicos,
populares, históricos ou ficcionais, não importa. Intertextualidades fazem bem.
·
Todo
momento é único, e todo perfil reflete um momento.
·
Muitas
ideias interessantes nos escapam ou surgem tardiamente. Relaxe: isso acontece
até com quem pode passar uma década dedicando-se à escrita de um livro de 1.000
páginas.
[1]
Jornalismo Narrativo, também conhecido como Jornalismo Literário, “é a
reportagem de imersão sustentada por meticuloso trabalho de campo e uma escrita
refinada”.
[2]
Uso a expressão texto-perfil para diferenciar o escrito audiovisual. O cinema
documental, principalmente, tem explorado bastante bem os parâmetros
biográficos contemporâneos.
[3] GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Pp.303-4.
BOAS, Sergio Vilas. A arte do perfil. In: BOAS, S. V. Perfis - o mundo dos outros: 22 perfis e 1 ensaio. São Paulo: Manole, 2014.
0 Comentários