A logística de fazer um morto


Pela voz da viúva, o choro é iminente: “Engraçado que não é porque era meu marido, mas ele tinha muito caráter, todo mundo gostava dele. Não falava mal de ninguém, não tinha maldade nenhuma”.


Do outro lado da linha, Willian Vieira, de 23 anos, obituarista da Folha de S.Paulo, ajeita-se na cadeira. Há três meses no cargo, ele não sabe bem o que fazer nessas situações.


– Mas… Quando ele pegava um relógio para consertar, ele ficava em cima daquele relógio muito tempo?


– Ah, ficava até de noite.


– E a casa de vocês tem muito relógio antigo?


– Ele tinha uns… Olha, aqui na minha frente tem uns sessenta.


Os olhos de Vieira brilham. Ele apanha a caneta e rascunha a informação no caderninho. A viúva não poderia prever que esse tipo de detalhe interessava mais do que a índole do marido. Na página impressa, o texto começaria assim: “O tempo escoava devagar para o antiquarista George Homenco, imerso entre os mais de sessenta relógios que tiquetaqueavam nas paredes de sua casa, consertados todos por suas mãos grandes e precisas”.


Vieira é um homem miúdo, muito branco, que usa cavanhaque cerrado e cabelo escorrido, à Beatles. Só veste preto. Tem sempre na mesa um exemplar de Fama & Anonimato, do jornalista americano Gay Talese, marcado no perfil de um obituarista do New York Times conhecido como “Sr. Má Notícia”. O trabalho na Folha começou na editoria de cotidiano numa segunda-feira, 16 de julho de 2007. Na terça, aconteceu a tragédia do vôo 3 054 da TAM em Congonhas, e ele foi escalado para fazer plantão no IML. Acostumou-se a conversar com parentes de vítimas e talvez por isso – e pela indumentária que o caracteriza – tenha sido convocado a tocar a coluna de obituários. “No começo eu não tinha muita noção da logística de fazer um morto”, conta.


 ***


Toda manhã, depois de receber do serviço funerário de São Paulo uma lista com os falecimentos da véspera, Vieira digita os nomes no Google e vê se acha algum rastro do que as pessoas foram. Quando a lista do IML não o satisfaz, visita o site de jornais de todo o país, à procura de defuntos nacionais; para não perder tempo, tem um arquivo com o endereço eletrônico das páginas de falecimentos.


Seu tipo favorito é o que ele classifica de personalidade B, “uma pessoa anônima, mas importante no seu meio”. Vieira se preocupa em equilibrar profissões e tipos de mortes: “Não posso aproveitar só políticos ou professores, ou só mortos em tragédias”, explica. Na sua seção, estrangeiros e celebridades não morrem. O obituário de um artista, por exemplo, costuma ser escrito por um repórter da Ilustrada, o caderno de variedades do jornal. Se o papa falecer, também não é problema dele.


Em dias de vacas magras, Vieira recorre aos portais de notícia. Numa sexta-feira de janeiro, por exemplo, digitou em um deles as palavras “morre”, “morreu”, “falece” e “faleceu”. Por experiência, descartou os verbos no infinitivo. “É difícil ver obituário com a palavra ‘morte.'” Depois da amostra do processo de garimpagem, uma manchete lhe interessou – “Pedreiro morre em soterramento” – , mas a matéria, fraca, nem mencionava o nome do falecido. Vieira desistiu: “Às vezes é assim, uma desgraça, ninguém morre direito. O pior é a quarta-feira negra. Ninguém morre na quarta-feira”.


Precavido, ele mantém um banco de mortos para os momentos de dificuldade. Todos os dias tenta fazer mais de um perfil, publica o melhor e envia a sobra para uma espécie de purgatório. “Abri mão da regra de publicar sempre no dia seguinte à morte, porque só dá certo com São Paulo”, justifica. “Nos outros estados, às vezes o óbito é publicado na data do velório ou da missa de sétimo dia.”


Quando se interessa por um finado, Vieira o procura nas páginas amarelas ou pelo nome da empresa em que trabalhava. O contato é sempre feito por telefone: “Como o obituário não é praxe no Brasil, muita gente estranha um repórter ligando pra saber do morto”. A situação começou a mudar com o sucesso da coluna, que foi elogiada pelo ombudsman do jornal e indicada ao Prêmio Folha. Vieira foi surpreendido, há pouco, por um rapaz que atendeu a chamada em júbilo: “Eu estava mesmo esperando você me ligar, porque a minha mãe era o máximo!” Ele também tem recebido currículos de falecidos, com solicitações de perfil por parte da família.


Vieira não freqüenta velórios. Já tentou, imaginando que a cena poderia enriquecer o texto. “Era uma tristeza, ninguém queria saber de repórter ali. Eu também me senti incomodado, e não tem necessidade.” Ele percebeu que só no dia seguinte os parentes estão mais dispostos a contar a vida do falecido. “Num primeiro momento, sempre tem um estranhamento. Mas tento desarmar a pessoa mostrando interesse pelos detalhes, até que ela esquece que está falando com um repórter e passa a ver o morto na frente dela. Aí eu posso perguntar qualquer coisa.” As conversas telefônicas são gravadas em cassetes nos quais Vieira põe o nome do morto, a data do óbito e o desenho de uma cruz.


O título das matérias segue sempre a mesma estrutura, com o nome do falecido seguido de uma imagem marcante. O perfil do antiquário que colecionava relógios foi batizado de “George Homenco, em busca do tempo”. O da faxineira que, ao sair de um avião em solo, não percebeu a ausência da escada recebeu o título de “Deonice Santana, o sonho e a queda”. “Carlos dos Santos e o posto de gasolina” intitulou a matéria sobre o frentista que teve o corpo queimado pela explosão de uma bomba de combustível. Ele atendera ao celular enquanto descarregava 15 mil litros.


Vieira tenta não se envolver com as histórias. Vez por outra recebe um convite para visitar a família em casa ou para comparecer à missa de sétimo dia, o que recusa: “Com o espaço que tenho para escrever, se eu visse tudo não conseguiria me contentar com um texto pequeno. Eu ia ficar louco cortando frases”. Emocionar-se também é contraproducente – se os olhos marejam, ele os seca logo e rebate com uma pergunta objetiva. Quando a viúva do antiquário lhe fez um desabafo – “Não sei como vou viver sem ele” – , Vieira agradeceu pela paciência e respondeu: “O perfil deve sair neste domingo. E minhas condolências”.




SCARPIN, Paula. A logística de fazer um morto: ninguém morre na quarta-feira. Piauí, São Paulo, fev. 2018. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-logistica-de-fazer-um-morto/>. Acesso em: 18 abr. 2021.

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